A atual novela das oito, exibida pela Rede Globo, traz ao público diversos temas para discussão, e desta vez, com uma faceta mais provocativa do ponto de vista das tradições brasileiras, apontadas como conservadoras, após o sucesso do filme Tropa de Elite.
Mas o principal ponto que quero destacar é a aparente autonomia reinante na favela da Portelinha, cujo reinado do personagem de Antonio Fagundes, Juvenal Antena, deixa transparente alguns aspectos que merecem ser observados.
O primeiro é a demonstração clara da liderança paternalista de Juvenal, ao sentar-se no “trono” para ser juiz e conselheiro, quando não o próprio poder executivo, nos casos que lhe são trazidos pela população local. As soluções são rápidas e obedecidas por todos que chegam à sua frente. Isso me faz lembrar do juiz distrital das cortes norte-americanas, aqueles que decidem em minutos as milhares de querelas que se apresentam diante de um deles, evitando o entupimento do Judiciário. A maioria dos problemas tem solução por ali mesmo, cabendo ao juiz a aplicação de multas, fianças, condenações curtas, dentre outras providências, tudo à luz dos princípios constitucionais – e não regras analíticas, sujeitas à contestações pelas dezenas de interpretações possíveis.
Essa agilidade, a custos muito baixos para a população que espera uma autoridade para decidir os problemas das pessoas, traz segurança jurídica para os pequenos negócios e as relações sociais de base, os quais constituem a maioria mais que absoluta das demandas judiciais em qualquer lugar do mundo. Afinal, seres humanos vivem em confronto, embora não aceitem viver sem que seja em sociedade.
Outro ponto que destaco é o debate entre o estado paralelo, que, neste caso, funciona com agilidade, encontrando soluções rápidas para os diversos tipos de problemas, e o Estado oficial, através da presença de um deputado federal e agora de seu assessor, Evilásio, cria de Juvenal, mas que já não concorda com o crescente autoritarismo do caudilho local. A pergunta que me pareceu intrínseca neste debate é: “afinal, porque deixar as regras do Estado oficial valerem aqui, se o Estado oficial nada faz pela favela?” Não seria melhor deixar que o poder local, mesmo que representado por uma liderança paternalista, siga tocando a vida de todos, resolvendo seus próprios problemas em comunidade?
Não estou defendendo o “estado paralelo”, não me entendam mal, mas a estória mostra exatamente esse debate, e creio que até o final da novela, até agora interessante, bastante diferente das anteriores, pois não vi apologia a valores estranhos à tradição brasileira, o debate deverá ser ampliado, provavelmente deixando a pergunta no ar. A favela da Portelinha demonstra como é possível a convivência em comunidade, em harmonia, mesmo com os dramas humanos, mostra como pode se sustentar economicamente, embora Juvenal seja também, o estereótipo do poder centralizador, por controlar a arrecadação para a “associação”, não deixando de usufruir indevidamente da mesma, como na prática ocorre no Estado oficial. Mas mostra também, como esse conjunto pode coexistir pacificamente quando os assuntos e querelas são rapidamente resolvidos por uma autoridade. As pessoas parecem concordar em pagar o tributo desde que tudo seja resolvido.
A autoridade não pode faltar. O que um povo espera é ter liderança e autoridade, mas nunca o autoritarismo – aliás, o autoritarismo crescente de Juvenal poderá levá-lo a perder seu “trono”, caso seu novo desafeto, cheio de ideais de democracia, chegue a peitá-lo, como já começou. O autoritarismo do estado paralelo não será páreo para o autoritarismo do Estado oficial. Mas a liderança com autoridade do estado paralelo tem condições de muito mais resistência contra o autoritarismo do Estado oficial. Este último, diante do autoritarismo de Juvenal, poderá “libertar” o povo da Portelinha, para submetê-lo ao seu próprio autoritarismo e, paradoxalmente, abandono.
Eu conheci uma favela assim no Rio de Janeiro, a de Recreio dos Bandeirantes. Fiquei impressionado com o nível de confiança interna, até carros com janelas abertas e objetos nos bancos eram vistos, sem que isso representasse problema. O movimento comercial de produtos e serviços era intenso. Não existe crime, pois criminosos que são flagrados, são “convidados” a deixarem o território imediatamente, sob pena de execução. O Estado Oficial não existe sequer nas transações imobiliárias, garantidas por documentos assinados e registrados na sede da associação local. Não existem tributos, apenas contribuições mensais para a Associação. Pessoas de classe média estavam se mudando para lá, pois era mais seguro, com mais prosperidade do que no Estado oficial. Dizem que a Portelinha foi inspirada no Recreio dos Bandeirantes.
Os fatos demonstram, tanto na vida real, quanto na ficção, que a autonomia local deve ser observada como natural do ser humano, especialmente em grupos sociais, pois a visão de uma sociedade nacional igualitária e conectada entre si, como se fosse uma pequena comunidade, é, além de utópica, agressiva à própria natureza humana, especialmente em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Alegra-me de ver o assunto tratado em uma novela com o alcance que tem. Mesmo que este tema, tido mais como pano de fundo do que principal, não tenha sido notado por muita gente, o conceito se alinha com a essência de praticamente todos que acompanham a novela, independentemente de alguns temas mais bizarros como o caso dos dois pais, um heterossexual e outro, homossexual, para uma criança. O que vai ficar, na minha opinião, como destaque, consciente ou inconsciente na cabeça das pessoas, é o conceito da autonomia local, do poder local, da responsabilidade local, em confronto com o Estado e seu aparato autoritário, sem autoridade e sem liderança, ávido apenas em sugar recursos através de uma miríade de tributos, sem a justa contrapartida, apenas migalhas.
A autonomia e a descentralização poderão trazer muitos juvenais pelo Brasil afora, mas, com o poder da mídia em informar a síndrome do autoritarismo será progressivamente curada, cambiada por um consentimento individual e coletivo à necessária e até agora insubstituível liderança com autoridade. O povo sabe o que quer…
